O acidente aéreo da seleção da Zâmbia em 1993: sonho, pesadelo e o recomeço Chipolopolo

19 de setembro de 1988. Após empatar com o Iraque, a seleção da Zâmbia enfrenta a Itália pela segunda rodada da fase de grupos do futebol no Jogos Olímpicos de Seul. Equipe italiana contava com talentos como Tacconi, Carnevale e outros bons jogadores. Em qualquer situação, o país da Bota seria considerado favorito no duelo. Talvez acomodado pelo favoritismo excessivo, os europeus começaram o jogo de forma lenta e sucumbiram aos velozes e habilidosos africanos. Zâmbia 4×0 Itália. Com direito a três gols e uma assistência de Kalusha Bwalya, jogador que seria contratado pelo PSV Eindhoven ao final da competição.

Zâmbia 4×0 Itália- Jogos Olímpicos de Seul, 1988

Após a zebra histórica, a seleção da Zâmbia, também conhecida como Chipolopolo -os balas de cobre- ganhou novamente por 4×0 sobre a Guatemala e se classificou em primeiro lugar no grupo. Nas quartas de final, foi a vez dos zambianos provarem do próprio veneno e serem eliminados pela Alemanha Ocidental. O resultado? 4×0.

O SONHO DA COPA DO MUNDO

Mesmo sem conquistar uma medalha em Seul, o desempenho da Zâmbia era indício de que uma talentosa geração poderia dar alegrias futuras ao país. Quem sabe disputar uma Copa do Mundo? Seria uma façanha enorme, haja visto que a Zâmbia jamais havia disputado a competição e apenas duas vagas eram destinadas pela FIFA para todo o continente africano.

Nas eliminatórias para a Copa de 1990, a seleção ficou em segundo lugar em um grupo composto também por Tunísia, Zaire e Marrocos. Somente o líder do grupo passava para a fase seguinte. A Tunísia ficou em primeiro lugar, um ponto acima da Zâmbia e se classificou para a disputa de uma vaga africana para o Mundial de 1990 contra a seleção de Camarões (a outra vaga do continente ficaria com o Egito, que venceu a Argélia). O mesmo Camarões de Roger Milla, Omam- Biyik  e companhia que encantou o mundo sete meses depois com memoráveis vitórias sobre a Argentina, Colômbia e uma eliminação nas quartas de final para a Inglaterra em uma partida disputadíssima. O pouco de futebol alegre daquela Copa (edição com menor média de gols) veio dos Leões Indomáveis.

Em 1993, a geração zambiana teria outra oportunidade de realizar o sonho de disputar uma Copa nas complicadas eliminatórias africanas. Agora o sonho era um pouco mais possível. Após o brilhante desempenho camaronês na Itália, a FIFA aumentou de 2 para 3 o número de vagas para a África no Copa de 1994. A fórmula de disputa era relativamente simples: na primeira fase, 40 países foram divididos em 9 grupos e somente o vencedor de cada grupo passava para a fase seguinte; na segunda fase, as seleções foram divididas em 3 grupos com 3 seleções cada. O vencedor de cada grupo estaria na Copa do Mundo de 1994. Ufa!

Na primeira fase, a seleção da Zâmbia se classificou em um grupo com Madagascar e Namíbia. Tanzânia e Burkina Faso também estavam no grupo, mas desistiram. A Namíbia perdeu seus quatro jogos e a Zâmbia conseguiu a classificação no saldo de gols ao empatar no número de pontos com Madagascar. Um pouco sofrido, mas o objetivo continua vivo e mais possível do que nunca.

Na segunda e última fase, a Zâmbia enfrentaria o Marrocos e o Senegal no seu grupo pela vaga na Copa. Era um grupo difícil, mas sonhar não custa nada- já diria um famoso samba-enredo do ano anterior. Mas aí chegou a triste noite de 27 de abril de 1993 e o sonho tão real se transformou em um enorme pesadelo de todo um esperançoso país.

Acidente aéreo da seleção da Zâmbia

Na sua primeira partida da fase final, a Zâmbia iria enfrentar o Senegal fora de casa em Dakar. Um ultrapassado avião da Força Aérea da Zâmbia levaria a delegação de 30 pessoas, 18 destes jogadores, até Senegal. A aeronave militar era de 1975, possuía um histórico de falhas mecânicas, apresentou defeitos nos voos de teste entre 22 e 26 de abril e mesmo assim foi autorizado a voar uma distância aproximada de 6 mil quilômetros.

A viagem até Dakar incluía paradas para reabastecimento no Congo, no Gabão e na Costa do Marfim até chegar ao destino final.  Ao final da primeira parada no Congo, o avião começou a apresentar problemas em no motor esquerdo, mas seguiu viagem. Pouco antes de chegar para a segunda parada de reabastecimento, o motor esquerdo pegou fogo e falhou, mas o piloto desligou erroneamente o motor direito. Com a ação, a aeronave militar perdeu a potência e caiu na costa do Gabão. Todos os passageiros e tripulantes do avião morreram.

Dos 18 jogadores mortos no acidente aéreo da seleção da Zâmbia, 6 deles haviam disputado os Jogos Olímpicos de 1988. Curiosamente, Kalusha Bwalya- o craque da partida contra a Itália- não estava entre as vítimas. Como o atleta jogava na Holanda, iria pegar um voo direto para Dakar. Outros dois importantes jogadores não estavam no voo fatal: Charles Musonda, jogador que atuava no futebol belga e estava lesionado e Bennett Mulwanda Simfukwe, que estava na lista da embarque do voo para Senegal, mas foi retirado de última hora por não ter conseguido autorização de seu time para a viagem. A partida contra Senegal, obviamente, também foi cancelada.

O DURO RECOMEÇO

A relação da maioria dos países africanos com o futebol é visceral. Não é apenas um esporte, mas a própria identidade e sentimento de orgulho da nação. E no caso da Zâmbia, mesmo com toda a dor da tragédia era preciso recomeçar. Ainda havia uma eliminatórias para a Copa do Mundo para ser disputada e também uma eliminatórias para a Copa Africana de Nações de 1994.

Uma tragédia assim sempre causa enorme comoção. Os acidentes do Torino (1949), Manchester (1958) e Chapecoense (2016), talvez sejam os mais conhecidos. No caso zambiano a comoção também foi enorme, como não poderia deixar de ser. Enquanto a Federação de Futebol da Zâmbia buscava novos jogadores em seu campeonato local, a Dinamarca, campeã europeia à época, ofereceu suas instalações e o escocês Ian Porterfield, ex-técnico do Chelsea, assumiu o desafio de planejar e reconstruir a Chipolopolo a partir do zero.  Dentro de campo a liderança caberia a Kalusha. Sempre Kalusha.

Dez semanas após o acidente aéreo da seleção da Zâmbia, os jogadores entrariam em campo para sua primeira partida da fase final das Eliminatórias da Copa do Mundo. Em 17 de julho de 1993, um país inteiro lambia suas feridas e iria enfrentar o Marrocos em Lusaka, capital da Zâmbia. Aos quinze minutos de jogo, Daoudi fez o primeiro gol do Marrocos, mas o “catado” zambiano jogava por algo muito maior: a honra de seu povo e pela memória dos que partiram. A Zâmbia virou a partida com gols aos 15 e 22 minutos do segundo tempo e venceu a partida. Se o destino, esse traiçoeiro, causou tanta dor a todo um país, ao menos também ofereceu um breve momento de alegria.

Zâmbia 2×1 Maroccos. Recomeçar

As eliminatórias prosseguiram e a Zâmbia empatou fora e venceu em casa o Senegal. Os zambianos chegavam para a última rodada precisando apenas de um empate contra o Marrocos, em Casablanca. Porém mais uma vez o destino lhe fora cruel: a Zâmbia perdeu por 1×0 e deixou escapar a tão sonhada vaga. Um gol marroquino aos 17 minutos do segundo tempo impediu um final épico que, no mínimo, seria exaltado durante a Copa do Mundo de 1994 e também tema de diversos filmes, livros e documentários.  

Um pequeno consolo ao país foi a classificação para a Copa Africana de Nações. E mais uma vez o espírito de superação zambiano foi posto a prova. Contra todas as expectativas, a equipe chegou até a final da competição contra a Nigéria. Mesmo saindo na frente do placar, a Zâmbia não resistiu à força das Super Águias e perdeu por 2×1. Outra jornada brilhante, mas sem o desfecho de cinema que aqueles homens mereciam.

A GLÓRIA

Após o desempenho de 1994, a Zâmbia não conseguiu chegar próximo de conquistar uma vaga na Copa do Mundo e pouco brilhou nas competições continentais. Até que em 2012, os zambianos disputaram a Copa Africana de Nações na Guiné-Equatorial e no Gabão. O mesmo Gabão em que o avião da Força Aérea caiu.

O país possuía outra geração talentosa, mas poucos apostariam em um título chipolopolo. Seleções como Costa do Marfim de Didier Drogba, Gana e Mali possuíam jogadores de nível mundial e eram consideradas favoritas. Mas contra os prognósticos, os zambianos conseguem chegar até a final contra a Costa do Marfim.

Um dia após vencer Gana na semifinal, os jogadores e dirigentes da Zâmbia visitaram a praia em Libreville onde a aeronave militar caiu em 1993. Todos fizeram homenagens às vítimas e prometeram o título. O técnico francês Herve Renard resumiu o espírito:

“Vamos jogar em honra à memória das vítimas de 1993”

Na final, a Zâmbia conseguiu levar a partida até a decisão por pênaltis e conquistou o título após 18 cobranças e uma dramática vitória por 8×7. Os Elefantes foram abatidos por uma zebra. Uma zebra de cobre e que esperou 19 anos.

No pódio uma faixa recordou a geração interrompida. Era hora de festejar a sua maior alegria futebolística no país em que havia ocorrido a maior tristeza. Uma conquista eterna para os imortais da Zâmbia: os de 1993 e os de 2012.