É curioso que um jogador que ficou conhecido como “Alegria do Povo” ter sido responsável por algumas das histórias e lembranças mais tristes do nosso futebol. Se foi sinônimo de felicidade, também foi de melancolia. Infelizmente.
A biografia Estrela Solitária, escrita por Ruy Castro, descreve com precisão as genialidades de Garrincha dentro de campo e as suas desventuras no extracampo… as injeções de xilocaína no joelho, os inúmeros casos amorosos, sua derrota para o álcool. etc.
A dolorosa participação de Garrincha no desfile da Mangueira no Carnaval de 1980 talvez tenha sido o momento mais evidente do que ele sofreu após o final de carreira. A decadência de um ídolo aos olhos do grande público. Ironicamente, em uma festa que deveria trazer apenas momentos de celebração.
O DESFILE, A INCREDULIDADE
Nos anos anteriores, Garrincha passou por idas e vindas em hospitais em virtude do alcoolismo. Um adicto que não podia mais ficar sem beber. Em uma de suas internações, o ex-jogador teve alta apenas três dias antes do fatídico desfile. Segundo relatos, Garrincha não bebeu no dia do Carnaval, mas ainda estava sob o efeito de medicamentos utilizados na interação e praticamente chapado.
Com o título de “Coisas Nossas”, o enredo mangueirense de 1980 exaltou costumes e tradições brasileiras. Entre eles o futebol. A escola foi para o desfile com 54 alas e 3.400 integrantes. Não foi uma apresentação inesquecível. Apenas um doloroso momento ficara marcado para a posteridade: um Garrincha morto-vivo em um dos carros alegóricos. Sentado, sem esboçar reação e praticamente paralisado.
Quando o carro surgiu na cabeça da Marquês de Sapucaí, as arquibancadas o ovacionaram. Mas , à medida que ia passando pelo público e Garrincha podia ser visto de perto, o aplauso ia dando lugar ao pasmo. Era um zumbi, sonado, indiferente, suando muito e com uma expressão de chumbo. Às vezes, acenava molemente com um lenço vermelho- o extremo oposto da euforia que se esperava da “Alegria do povo”. Seu abatimento era ainda mais chocante em contraste com o vigor e a euforia dos milhares de figurantes vestidos de verde e rosa. (Ruy Castro, Estrela Solitária, p.468)
Com uma apresentação considerada ruim e um samba-enredo longe de empolgar, a Mangueira acabaria em oitavo e antepenúltimo lugar. Outra tristeza ainda seria reservada para a escola: o desfile de 1980 foi o último da tradicional porta-bandeira da escola Neide, que tinha um câncer no útero, mas que escondeu a doença para não ser impedida de desfilar e acabou morrendo do ano seguinte. Tinha apenas 40 anos. Realmente, esse período não foi um cenário de beleza para a Verde e Rosa.
O TRISTE FIM
Após a desastrosa passagem pela avenida, uma rede de solidariedade foi montada com o intuito de ajudar Garrincha. A AGAP (Associação de Garantia ao Atleta Profissional), a CBD (Confederação Brasileira de Desportos) e a LBA (Legião Brasileira de Assistência), foram algumas das entidades que tentaram recuperá-lo. Diversos profissionais, além de ex e atuais jogadores da época também buscaram dar sua parcela de contribuição. Deu certo por alguns meses, mas Garrincha sempre acabava driblado pela bebida. Acabou morrendo em 20 de janeiro de 1983
Não cabe um julgamento de sua conduta, apenas uma constatação: as páginas finais de Mané Garrincha foram tristes demais para serem esquecidas. A vida é muito mais que futebol. Ou Carnaval. Mas a essência do que acontece nele e com seus personagens não pode ser ignorada, pois é um reflexo de nossa sociedade. Com todas as suas angústias, dilemas e contradições.
Como deveria ter sido o Carnaval de Mané em 1980