Ninguém é livre impunemente. Ainda mais em tempos de exceção. Afonso Celso Garcia Reis, o Afonsinho, descobriu essa amarga máxima ao enfrentar a arcaica estrutura do futebol brasileiro em 1971.
Na época, o clube poderia ser considerado “dono” de um jogador. Ao estabelecer um contrato de trabalho, o atleta ficava preso à agremiação mesmo após o término do tempo do vínculo. Somente teria o passe liberado com o pagamento de uma multa rescisória ou um acordo com outro clube. Caso contrário, ele ficaria vinculado ao clube. Um sistema autoritário, em que o jogador deveria se submeter e não questionar. Algo bem adequado para o período ditatorial que estava em vigor no Brasil.
Estudante de medicina, Afonsinho jogava pelo Botafogo e fugia do estereótipo de jogador que não tinha outros interesses além do futebol. Mesmo de origem simples, sabia que o universo era muito mais amplo do que correr atrás de uma bola. Mas por que um cartola apresentaria esse mundo a jogadores humildes? A ignorância era uma benção que os dirigentes sabiam muito bem explorar.
No gramados, Afonsinho era um jogador habilidoso, estilo clássico, mas era contestador. Uma heresia para o futebol nacional e uma dor de cabeça para os dirigentes do seu clube. Não aceitava, por exemplo, os constantes atrasos nos salários e nos bichos (prêmios por vitórias).
Mesmo com os títulos estaduais de 1967 e 1968 e da Taça Brasil de 1968 pelo clube da Estrela Solitária, Afonsinho começou a ser deixado de lado pelos seus questionamentos e por usar barba e ter um cabelo grande. O que deveria ser uma banal decisão pessoal, era visto com ressalvas pelos conversadores cartolas. Alegavam que o futebol não tolera essa aparência. Parecia mais um Che Guevara, um hippie, um cantor de rock, talvez um subversivo.
Como castigo, em 1970, Afonsinho foi emprestado pelo Botafogo para o Madureira. Subúrbio carioca. Um pequeno time que jamais teria o poder financeiro de possuir em seus quadros um jogador do seu nível. Após seis meses, estava de volta ao Botafogo e a ordem era bem clara: ou corta a barba ou não joga mais pelo clube e ficaria afastado.
Ao se recusar a cumprir a determinação, Afonsinho entrou no Superior Tribunal de Justiça para ter o direito a seu passe. Praticamente sozinho, sem o apoio dos outros jogadores (uma classe desunida até os dias atuais), consegue em março de 1971 o seu passe, o primeiro jogador do futebol brasileiro livre. Poderia alugar seus serviços a qualquer clube pois era dono do próprio nariz.
“São poucos os jogadores que sabem das coisas. Hoje em dia tem um aí: Afonsinho, que é estudante de medicina e como é inteligente e culto tornou-se dono do seu passe, levou a melhor com os cartolas” (Almir Pernambuquinho, ex-jogador, Memórias)
Afonsinho não jogou uma Copa do Mundo, mas teve uma visão de mundo que deve ser aplaudida. Manteve a sua barba e a sua dignidade, mesmo em períodos autoritários e sabendo de todas as represálias que sofreria. Algo para poucos.