A França conquistou neste domingo (15), após 20 anos, o seu segundo título em Copas do Mundo. E, assim como em 1998, prevaleceu nos gramados da Rússia a dedicação e o talento de jogadores cujas raízes vão além do território francês. É a nova geração Black-Blanc-Beur (negros, brancos e árabes), mostrando a estreita relação entre futebol e imigração no país.
Dos 23 atletas comandados pelo técnico Didier Deschamps, nada menos do que 19 nasceram ou vêm de famílias .que migraram para a França. A revelação do Mundial Mbappé, por exemplo, é filho de um camaronês e de uma argelina. Para se ter uma ideia, dos 11 titulares que derrotaram a Croácia por 4×2 na final, só o goleiro Lloris, o lateral direito Pavard e o atacante Giroud têm raízes totalmente francesas.
Situação bastante semelhante à de quando a França conquistou em casa seu primeiro título. Os grandes destaques da seleção de 98 também eram filhos de imigrantes. Lillian Thuram, que marcou os dois gols contra a mesma Croácia na semifinal, é filho de mãe solteira nascida em Guadalupe, uma ilha caribenha pertencente à França. E Zinedine Zidane, o maior craque do futebol nacional, tem origens na Argélia, antiga possessão francesa. É um protagonismo que tem influência direta só na força do futebol, como no clima social do país.
Em 1998, mesmo diante da vitória, houve quem criticasse a miscigenação da seleção. Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, o partido de extrema direita, chegou a afirmar na época que considerava “artificial” ter tantos “estrangeiros” na equipe e que o técnico (Aimé Jacquet) “talvez tenha exagerado na proporção de jogadores de cor”. Tão propagada, a pseudo união étnica e cultural não durou nem mesmo diante da vitória no Mundial.
Para piorar, desde a conquista da Eurocopa de 2000, a seleção passou a conviver com fracassos e decepções: eliminação na 1ª fase da Copa de 2002, perda na final de 2006 e a cabeçada de Zidane em Materazzi e vexame no Mundial de 2010. Em um contexto de crescente desemprego, crises migratórias no continente e ameaças terroristas, a seleção passou de vitrine a vidraça social.
Um ano após a França ser eliminada ainda na primeira fase na Copa da África de 2010, o diretor-técnico da seleção, François Blaquart, chegou a sugerir a criação de cotas para jogadores negros e de descendência árabe nas categorias de base da seleção francesa. A polêmica veio a público quando a imprensa vazou uma conversa sobre o assunto entre ele e o então treinador, Laurent Blanc. Blaquart perdeu o cargo e o técnico foi inocentado.
Mais recentemente, em 2017, a seleção foi novamente pano de fundo para polêmicas raciais e étnicas nas eleições presidenciais. Tudo por conta de uma declaração dada ainda em 2006 pelo atacante Karin Benzema, quando ele foi questionado se consideraria atuar pela seleção da Argélia, país onde nasceram seus pais. “Argélia é o país dos meus pais e eu a amo muito, mas vou jogar pela França. Aqui a questão é esportiva e Argélia é meu país natal”, disse à época o jovem jogador do Lyon.
A frase do principal nome da França na Copa de 2014 foi um prato cheio para a Frente Nacional, da ultranacionalista Marie Le-Pen, filha de Jean-Marie e candidata à Presidência. “Que ele jogue pelo ‘seu país’, se não está contente”, disse Marion Le Pen, sobrinha da líder de extrema direita derrotada no segundo turno pelo centrista Emmanuel Macron.
#Benzema : “L’Algérie c’est mon pays la France c’est juste pour le coté sportif”. Qu’il aille jouer dans “son pays” s’il n’est pas content !
— Marion Maréchal (@MarionMarechal) 1 de junho de 2016
Pivô da polêmica eleitoral, Benzema deixou de ser convocado para a seleção no final de 2015, quando teve seu nom envolvido em um escândalo de chantagem com o colega de seleção, Mathieu Valbuena. O jogador chegou a obter um recurso na Justiça o livrando da acusação de pedir dinheiro para não divulgar um vídeo de teor sexual do compatriota, mas mesmo assim ficou de fora da lista de Deschamps. Para o atacante do Real Madrid, porém, foi justamente sua origem argelina e fato de ser muçulmano que pesaram na sua não convocação.
Duas décadas depois da sua primeira Copa do Mundo e em contexto social muito diferente ao de 98, uma outra geração de imigrantes leva novamente os franceses à glória. A história dirá, mais uma vez, se o tão sonhado lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade é capaz de ultrapassar os limites dos gramados.