Existem clubes e seleções acostumadas ao sucesso. Ganhar é uma rotina, quase algo automático, praticamente uma obrigação. Por sua vez, em raros momentos uma equipe destinada a colecionar fracassos subverte a lógica e ousa a conquista de algo improvável.
A classificação da Bolívia para a Copa do Mundo de 1994 talvez seja uma das mais belas histórias de felicidade de um povo com o futebol. A façanha fica ainda mais épica quando há a lembrança que se trata do país mais pobre da América do Sul. Um triunfo construído com trabalho, esforço e uma geração talentosa.
Quando se fala em Bolívia no futebol se pensa em altitude. De certa forma há um preconceito com o futebol boliviano. Todas as vitórias bolivianas são menosprezadas. Se ganham em casa foi por causa da altitude, se ganham fora é um vexame para o mandante. Sua única página de glória havia sido o Sul-Americano de Futebol (depois chamado de Copa América) de 1963, disputado na própria Bolívia.
Participações da Bolívia em Copas do Mundo? Apenas em 1930 e 1950, edições em que foram convidados e não precisaram disputar eliminatórias. Disputaram três jogos e sofreram três derrotas (4×0 contra a Iugoslávia e 4×0 ante o Brasil em 1930 e 8×0 diante do Uruguai em 1950). Levou 16 gols e não marcou nenhum.
Não é justo justificar a classificação do país para a Copa de 1994 como sorte ou injustiça do futebol. Nas eliminatórias anteriores, a Bolívia quase alcançou a classificação para a Copa de 1990. Em um grupo formado por Uruguai, Peru e Bolívia, eles ficaram em segundo lugar com a mesma pontuação do primeiro colocado, o Uruguai. Na última última partida dependiam de um empate o Uruguai no estádio Centenário para conseguir a classificação. Perderam e ficaram novamente fora. Uma triste rotina.
A fórmula de disputa das eliminatórias sul-americanas para a Copa de 1994 era diferente da atual: todos contra todos em turno e returno. A Conmebol dividiu os países em dois grupos: Colômbia, Argentina, Paraguai e Peru no grupo 1 e Brasil, Bolívia, Uruguai, Equador e Venezuela no grupo 2. No grupo 1, o primeiro colocado se classificava diretamente para o Copa e o segundo iria para a repescagem com o vencedor das Eliminatórias da Oceania. No grupo 2, os dois primeiros colocados garantiam vaga no Mundial dos EUA. Todos os jogos foram disputados entre julho e setembro de 1993.
Para comandar o selecionado nacional foi escolhido o técnico espanhol Xabier Azkargorta em novembro de 1992. Um completo desconhecido com um volumoso bigode e que só havia treinado equipes espanholas pequenas e médias. O vaticínio da imprensa boliviana é irônico e cruel:
“Mais um espanhol para nos roubar la plata“
Além de Azkargorta, a Bolívia também possuía jogadores como Marco “El Diablo” Etcheverry e Erwin “Plantini” Sanchez. Talvez os dois melhores atletas bolivianos da história. Boas peças também completavam o elenco. Jogadores como o goleiro Carlos Trucco, o zagueiro Marco Sandy, o lateral Cristaldo e o meia Julio César Baldiviezo.
Na preparação, muito treinamento, jogos dentro de campo e um trabalho psicológico fora dele. O vitimismo histórico boliviano precisava ser combatido. Não importava o adversário, mas sim a confiança na própria capacidade de realizar grandes coisas.

Logo na primeira rodada a Bolívia ganha da Venezuela por 7×1 fora de casa. Enquanto isso, o Brasil consegue um empate contra o Equador no Guayaquil. Na próxima rodada os dois países iriam se enfrentar em La Paz. Um acabaria em delírio, o outro em desgraça.
A campanha boliviana de 1993 é lembrada pelos brasileiros, especialmente pelos dois países estarem no mesmo grupo e o Brasil sofrer sua primeira derrota na história em uma partida das Eliminatórias. Um 2 a 0 para a Bolívia em La Paz com o goleiro Taffarel como protagonista do drama brasileiro. Primeiro como herói ao defender um pênalti ao 35 minutos do segundo tempo e depois como vilão ao levar, oito minutos depois, debaixo das pernas o primeiro gol da partida.

A derrota gerou um clima de revolta em todo o Brasil. Fazia 23 anos que o Brasil não conquistava a Copa e a derrota nas eliminatórias era o fundo do poço. Se não ganhava nem da Bolívia iria ganhar de quem? Não eram mais os melhores do mundo, talvez fossem os piores.
Enquanto isso, a Bolívia celebrava uma das maiores glórias de sua história. Mais havia um objetivo maior a ser alcançado. O país precisa aproveitar sua sequência de partidas em casa. Após vencer a Venezuela fora na primeira rodada, a Bolívia faria quatro jogos em sequência em La Paz: Brasil, Uruguai, Equador e a Venezuela novamente. E aproveitou muito bem estas partidas. Alcançou 100% de aproveitamento com 5 vitórias nos 5 primeiros jogos, a liderança absoluta no grupo e o impossível cada vez mais próximo.
Na sequência, duas derrotas fora de casa. A vingança brasileira com um goleada por 6×0 e outra derrota por 2×1 contra o Uruguai. Mas na última rodada falta apenas um empate contra o Equador fora de casa para carimbar o passaporte. O jogo termina em 1×1 e um delírio nacional acontece. A Bolívia vai à Copa do Mundo de 1994.

Não era somente a altitude que garantiu o feito boliviano, havia uma geração de jogadores talentosos e esforçados que ultrapassaram suas possibilidades para oferecer ao seu povo um breve momento de felicidade coletiva. A despeito de toda as dificuldades cotidianas, cerca de 7 milhões de bolivianos celebram a classificação. Um povo vítima de tantos preconceitos, ainda nos dias atuais, possuía um orgulho inabalável: a sua seleção nacional.
Campanha Boliviana nas Eliminatórias
Venezuela 1×7 Bolívia (17/07/1993)
Bolívia 2×0 Brasil (24/07/1993)
Bolívia 3×1 Uruguai (07/08/1993)
Bolívia 1×0 Equador (14/08/1993)
Bolívia 7×0 Venezuela (21/08/1993)
Brasil 6×0 Bolívia (28/08/1993)
Uruguai 2×1 Bolívia (11/09/1993)
Equador 1×1 Bolívia (18/09/1993)
Classificação Final (*obs: a vitória valia 2 pontos):
Brasil : 12 Pontos (5 vitórias/ 2 empates/ 1 derrota)
Bolívia: 11 Pontos (5 vitórias/ 1 empate/ 2 derrotas)
Uruguai: 10 Pontos (4 vitórias/ 2 empates/2 derrotas)
Equador: 5 Pontos (1 vitória/ 3 empates/ 4 derrotas)
Venezuela: 2 pontos (1 vitória/ 0 empate/ 7 derrotas)