O Barcelona e a questão catalã: mais que um clube?

A cidade de Barcelona e a sua principal bandeira esportiva vivem dias de tensão e incertezas. A independência da região espanhola da Catalunha pode simbolizar um enorme desafio para o futuro de uma das maiores potências do futebol mundial.

No domingo (1), mais de dois milhões de pessoas foram às urnas de Barcelona e das demais cidades da Catalunha para votar em uma consulta popular sobre a independência da região. Houve forte repressão da polícia nacional e quase 900 pessoas ficaram feridas. Com mais de dois milhões de votos (90% do total), o “sim” venceu o referendo, considerado pelo governo espanhol como inconstitucional.

Com 7,3 milhões de habitantes, a Catalunha detém 19% do PIB e é a região mais rica do país. Na avaliação dos separatistas,eles contribuem muito e, em troca, recebem pouco da Espanha. É algo que reforça o desejo separatista.

No mesmo dia da votação do referendo, Barcelona e Las Palmas entraram em campo pelo campeonato espanhol. O clube cogitou adiar a partida, mas, com a recusa do pedido por parte da Liga Espanhola, a opção foi jogar de portões fechados, como forma de protesto.

Mantendo uma certa neutralidade, o Barcelona não se posicionou abertamente em defesa da independência catalã, mas, em nota, fez uma defesa do “país, da democracia, da liberdade de expressão e do direito de decidir”.

Essa dimensão sociopolítica é um traço marcante e histórico no clube. Aumentou muito durante os 36 intermináveis anos de poder do general Franco, um obcecado torcedor do arquirrival Real Madrid. Nessa época, enquanto o Real acumulava títulos e se tornava uma ferramenta de propaganda franquista, o clube alimentava sua resistência e identidade catalã.

“O Barça é a única instituição legal que une o homem da rua com a Catalunha que pode ter sido e não foi”, trecho do artigo “Barça, Barça, Barça”, do escritor e torcedor Manuel Vásquez Montalban. Escrito em 1960, o texto é um dos marcos do movimento catalanista do Barcelona.

Esse elo histórico entre a Catalunha e o Barcelona não é algo restrito apenas aos torcedores. Envolve também jogadores e dirigentes. Durante a Guerra Civil Espanhola (1936–1939), Josep Sunyol,um presidente do clube com orientação nacionalista catalão, foi executado a tiros por guardas do general Franco. Agora, no recente episódio da votação de domingo, ídolos vitoriosos com a camiseta azul e grená, como o treinador do Manchester City, Pep Guardiola, o ex-capitão Carles Puyol e o meia Xavi se posicionaram em defesa do direito popular. Zagueiro do Barcelona e da seleção espanhola, Gerard Piqué utilizou diversas vezes as redes sociais para defender a votação e acabou se tornando alvo das críticas de torcedores contrários à separação.

Embora o governo da Espanha rejeite a decisão do referendo popular, o governo da Catalunha parece irredutível. Segundo o presidente da região, Carles Puigdemont, a independência se dará “em questão de dias”. E, se isso acontecer, como ficará o clube?

Com 26 taças nacionais, 5 Ligas dos Campeões e 270 milhões de entusiastas ao redor dos quatro cantos do planeta, o Barcelona é um gigante do futebol. E também uma máquina quando o assunto é fazer dinheiro. Só o faturamento da temporada 2016–2017 atinge 708 milhões de euros (cerca de R$ 2,5 bilhões). Entram para a conta dessas cifras astronômicas os ganhos com patrocínio, direitos de transmissão e a exploração turística e comercial do estádio. É uma potência futebolística que seduz todo aficionado por futebol. E nisso inclui gente que visita o Camp Nou, que assiste os jogos no estádio ou mesmo quem compra produtos do clube morando a milhares de quilômetros de distância, só para ter a emoção de vestir uma camiseta estampada com nomes de astros como Messi, Suárez e Iniesta.

Porém, fora da Espanha e dentro de uma Catalunha independente, essa realidade pode mudar e muito. Javier Tebas, presidente da Liga Espanhola, admitiu que, caso se confirme a independência, o Barcelona e os clubes da região não poderão disputar o campeonato espanhol. Sem a Liga, poderia o Barça disputar, como convidado, competições de outros países, como da França e Inglaterra. E quais as chances de dirigentes franceses e ingleses aceitarem a entrada de um rival de tamanha envergadura no futebol?

Em caso de negativas de outros países, restará ao Barcelona e as outras equipes do novo país organizarem sua própria Liga nacional. E isso não seria nada animador. Na Catalunha, além do Barça, apenas os modestos Espanyol (da mesma cidade) e o Girona (do município homônimo) disputam a divisão principal do espanhol. Além deles, existem também outros 10 clubes em divisões inferiores, alguns até mesmo amadores. Assim, o Barcelona sairia de uma Liga com Real Madrid e Atlético de Madrid para disputar um torneio com equipes que chegam a receber a irrisória quantia de R$ 22 mil da federação para competirem.

Sem adversários do mesmo porte e com um campeonato pífio, será pouco provável que o Barcelona mantenha o mesmo plantel para disputar torneios contra times da 4ª divisão espanhola. E isso, em tese, poderia impactar diretamente na audiência, na imagem e nas receitas do clube. Os prognósticos vão além do azul e grená e impactam também a Liga Espanhola e a própria seleção, que deixaria de contar com atletas nascidos em território catalão.

Não se sabe ainda o resultado e tampouco os impactos dessa possível separação. De qualquer forma, o Barcelona foi e se mantém como símbolo de um povo que agora exalta sua cultura, identidade e reivindica a liberdade. E isso vai muito além das quatro linhas. O Barcelona é, de fato, muito mais do que um clube.